Convite - José Paulo Paes


Convite
José Paulo Paes
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

Poemas para brincar. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1991.



As Marias do meu lugar
Carlos Victor Dantas Araújo
I
Minha terra é pequenina
Fica aqui no Ceará
No Vale do Jaguaribe
Alto Santo aqui está
No Comando das Marias
Que progride esse lugar

II
Tem Maria sertaneja
Valente feito um trovão
Daquela que desde cedo
Faz o cultivo do chão
E a Maria tratorista
Que ajuda na plantação

III
Tem Maria lá na Câmara
Que é a vereadora
Tem Maria que cedinho
Limpa a rua com a vassoura
Tem aquela que ensina
A Maria professora

IV
A Maria forrozeira
Rodeia feito pião
Tem a Maria louceira
Transforma o barro com a mão
E a Maria morena
Com corpo de violão

V
Maria que no mercado
Vende o quente e o frio
E a Maria lavadeira
Faz espuma lá no rio
E a Maria açougueira
Com a faca faz desafio

VI
Maria no hospital
A Maria enfermeira
Lá na fábrica de tecidos
A Maria costureira
E aqui na minha casa
A Maria verdadeira

VII
Lá no altar da igreja
Maria diz o amém
Implora ao padroeiro
Para todos viver bem
A mãe do Menino Deus
Que é Maria também

VIII
Ah! Se em todo lugar tivesse
Assim tantas alegrias
E que fosse como meu
Nessa paz do dia a dia
Que faz o calor do sol
Dar força a essas Marias

Aluno finalista da 1ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, em 2008, 6º ano da E. M. E. F. Urcesina Moura Cantídio, Alto Santo - CE.


O mundo dentro da represa do Frade
Carla Marinho Xavier
A represa é presa
Presa com água
E feita de pedra, pesada
Com mil toneladas de água

Lá embaixo os peixes:
Cascudo, cará, carapeba
Brincam de esconde-esconde
Se entocando nas pedras.

Desce a correnteza, correndo
Descansa na represa
E cai pelo caidor
Fazendo cócegas nas pedras

A água de baixo
Temendo a água de cima
Faz onda para escapar
Fugindo para outro lugar

Sobre a estreita ponte
O danado do vento
Vem assustar a gente
Com seu sopro violento

As árvores nas beiras
Se seguram na areia
Temerosas
Não querem ser levadas
Pela força da correnteza

Da minha janela vejo esse
mundo:
Um mundo dentro do outro
Preso nas muralhas da represa

Aluna vencedora da 3ª edição do Prêmio Escrevendo o Futuro, em 2006

Alma cabocla - Paulo Setúbal

Alma cabloca
Paulo Setúbal
E, na doçura que encerra
Esta simpleza daqui,
Viver de novo, na serra,
Entre as gentes desta terra,
A vida que eu já vivi...

Obras completas. São Paulo: Saraiva, 1958.

Confidência do itabirano
Carlos Drummond de Andrade
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas...

Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond.



Cidadezinha - Mario Quintana

Cidadezinha
Mário Quintana
Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...
Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar...

Prosa e verso. 9ª ed. São Paulo: Globo, 2005.
© by Elena Quintana.

Milagre no Corcovado
Ângela Leite de Souza
Todas as noites
de céu nublado
no Corcovado
faz seu milagre
o Redentor:
fica pousado
no algodão-doce
iluminado
como se fosse
de isopor.

Mas todos sabem
que bem de perto
esse Jesus
é um gigante
de mais de mil
e cem toneladas...
Suba de trem,
vá pela estrada,
quem chega lá,
ao pé do Cristo,
vira mosquito.

E olhando em volta
para a cidade
de ponta a ponta
maravilhosa
a gente sente
um arrepio:
o milagre
é o próprio Rio!

Meus Rios. Belo Horizonte: Formato, 2000.

O buraco do tatu - Sérgio Caparelli

O buraco do tatu
Sérgio Caparelli
O tatu cava um buraco,
À procura de uma lebre,
Quando sai pra se coçar,
Já está em Porto Alegre.


O tatu cava um buraco,
E fura a terra com gana,
Quando sai pra respirar,
Já está em Copacabana.


O tatu cava um buraco
E retira a terra aos montes,
Quando sai pra beber água,
Já está em Belo Horizonte.


O tatu cava um buraco
Dia e noite, noite e dia,
Quando sai pra descansar,
Já está lá na Bahia.


O tatu cava um buraco,
Tira terra, muita terra,
Quando sai por falta de ar,
Já está na Inglaterra.

O tatu cava um buraco
E some dentro do chão,
Quando sai para respirar,
Já está lá no Japão.


O tatu cava um buraco.
Com as garras muito fortes,
Quando quer se refrescar,
Já está lá no Polo Norte.


O tatu cava um buraco,
Um buraco muito fundo,
Quando sai pra descansar,
Já está no fim do mundo.


O tatu cava um buraco,
Perde o fôlego, geme, sua,
Quando quer voltar atrás,
Leva um susto, está na Lua.

111 poemas para crianças. Porto Alegre: L&PM, 2008.

A valsa - Casimiro de Abreu

A valsa
Casimiro de Abreu
Tu ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;

Na valsa
Tão falsa,
Corrias
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranquila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Ilka Brunhilde Laurito (org.). Casimiro de Abreu (Antologia). São Paulo: Abril Educacão, 1982. Série Literatura Comentada.


Emigração e as consequências - Patativa do Assaré

Emigração e as consequências
Patativa do Assaré
Neste estilo popular
Nos meus singelos versinhos,
O leitor vai encontrar
Em vez de rosas espinhos
Na minha penosa lida
Conheço do mar da vida
As temerosas tormentas
Eu sou o poeta da roça
Tenho mão calosa e grossa

Do cabo das ferramentas

Por força da natureza
Sou poeta nordestino
Porém só conto a pobreza
Do meu mundo pequenino
Eu não sei contar as glórias
Nem também conto as vitórias
Do herói com seu brasão
Nem o mar com suas águas
Só sei contar minhas mágoas
E as mágoas do meu irmão


[ . . .]

Meu bom Jesus Nazareno
Pela vossa majestade
Fazei que cada pequeno
Que vaga pela cidade
Tenha boa proteção
Tenha em vez de uma prisão
Aquele medonho inferno
Que revolta e desconsola
Bom conforto e boa escola
Um lápis e o caderno

Uma voz do Nordeste. São Paulo: Hedra, 2000.

Travatrovas - Ciça

Travatrovas
Ciça
O pedreiro Pedro Alfredo

O pedreiro Pedro Alfredo,
o Pedro Alfredo Pereira,
tramou tretas intrigantes,
transou truques, pregou petas,
pois Pedro Alfredo Pereira
é um tremendo tratante!


Se um dia me der na telha


Se um dia me der na telha
eu frito a fruta na grelha
eu ponho a fralda na velha
eu como a crista do frango
eu cruzo zebu com abelha
eu fujo junto com a Amélia
se um dia me der na telha.


Chegou "seu" Chico Sousa


Só sei que "seu" Chico Sousa
chegou e trouxe da China
a seda xadrez da Célia
o xale roxo da Sônia
o xale cinza da Sheila
e a saia chique da Selma.

Travatrovas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

Trava-línguas

Trava-línguas
- Corrupaco papaco, a mulher do macaco, ela pita, ela fuma, ela toma tabaco debaixo do sovaco.
- Porco crespo, toco preto.
- Um tigre, dois tigres, três tigres.
- A pipa pinga, o pinto pia, quanto mais o pinto pia, mais a pipa pinga.
- Olha o sapo dentro do saco, o saco com o sapo dentro, o sapo batendo papo e o papo soltando vento.
- Não tem truque, troque o trinco, traga o troco e tire o trapo do prato. Tire o trinco, não tem truque, troque o troco e traga o trapo do prato.

Domínio Público.

Haicai - Ângela Leite de Souza

Haicai
Ângela Leite de Souza
Que cheiro cheiroso
de terra molhada quando
a chuva chuvisca!...

Três gotas de poesia. São Paulo: Moderna, 2002.

Pássaro livre - Sidônio Muralha

Pássaro livre
Sidônio Muralha
Gaiola aberta.
Aberta a janela.
O pássaro desperta,
A vida é bela.

A vida é bela
A vida é boa.

Voa, pássaro, voa.

A dança dos pica-paus. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985.

O leão - Vinicius de Moraes

O leão
Vinicius de Moraes
Leão! Leão! Leão!
Rugindo como um trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus quem te fez ou não
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação

O salto do tigre é rápido
Como o raio, mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o leão dá

Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte
Pois bem, se ele vê o leão
Foge como um furacão

Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus quem te fez ou não

Leão se esgueirando à espera
Da passagem de outra fera
Vem um tigre, como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranquilo
O leão fica olhando aquilo
Quando se cansam, o leão
Mata um com cada mão

A arca de Noé: poemas infantis. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
Autorizado pela VM Emprendimentos
Artísticos e Culturais Ltda . ©VM
Definições poéticas de Mário Quintana
Mário Quintana
Modéstia: A modéstia é a vaidade escondida atrás da porta.
Reticências: As reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho...
Recordação: A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha.

Sapo amarelo. São Paulo: Global, 2006.

Livros e flores - Machado de Assis

Livros e flores
Machado de Assis
Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


Obra completa III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962.

Rimas e quadras

Rimas e quadras
O cravo brigou com a rosa,
Debaixo de uma sacada.
O cravo saiu ferido,
E a rosa despedaçada.
                                          Domínio Público.

Lá no fundo do quintal
Tem um tacho de melado
Quem não sabe cantar verso
É melhor ficar calado
                                 Ricardo Azevedo. Armazém do folclore.                                          São Paulo: Ática, 2000.

Não sei se vá ou se fique
Não sei se fique ou se vá
Ficando aqui não vou lá
E ainda perco o meu pique
                                 Sílvio Romero. Contos populares do Brasil.                                          São Paulo: José Olympio, 1954.

Ô seu moço inteligente
Faça o favor de dizer
Em cima daquele morro
Quanto capim pode ter?
                                 Ricardo Azevedo. Armazém do folclore.                                          São Paulo: Ática, 2000.


Canção do exílio
Gonçalves Dias
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá,
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Cinco estrelas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Coleção Literatura em Minha Casa.

Duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz
Otávio Roth
Passarinho na janela, pijama de flanela, brigadeiro na panela.
Gato andando no telhado, cheirinho de mato molhado, disco antigo sem chiado.
Pão quentinho de manhã, dropes de hortelã, grito do Tarzan.
Tirar a sorte no osso, jogar pedrinha no poço, um cachecol no pescoço.
Papagaio que conversa, pisar em tapete persa, eu te amo e vice-versa.
Vaga-lume aceso na mão, dias quentes de verão, descer pelo corrimão.
Almoço de domingo, revoada de flamingo, herói que fuma cachimbo.
Anãozinho de jardim, lacinho de cetim, terminar o livro assim.
Duas dúzias de coisinhas à toa que deixam a gente feliz. São Paulo: Ática, 1994.

Quadras ao gosto popular - Fernando Pessoa

Quadras ao gosto popular
Fernando Pessoa
Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As per' las são os meus beijos,
O fio é o meu penar.
                                          Quadra 2 (27/8/1907)


A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada.
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.
                                          Quadra 9 (11/7/1934)


No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.
                                          Quadra 17 (4/8/1934)


Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.
                                          Quadra 18 (18/8/1934 - data provável)


Não digas mal de ninguém,
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.
                                          Quadra 62 (11/9/1934)

Obra poética VI. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Meus oito anos - Casimiro de Abreu

Meus oito anos
Casimiro de Abreu
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
De despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias de minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

[...]

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Lisboa, 1857.
Enciclopédia Itaú Cultural - Literatura Brasileira. Disponível em .

Fale Comigo!






Um desejo e dois irmãos

Dois príncipes, um louro, e um moreno. Irmãos, mas os olhos de um azuis, e os do outro verdes. E tão diferentes nos gostos e nos sorrisos, que ninguém os diria filhos do mesmo pai, rei que igualmente os amava.

Uma coisa porém tinham em comum: cada um deles queria ser o outro. Nos jogos, nas poses, diante do espelho, tudo o que um queria era aquilo que o outro tinha. E de alma sempre cravada nesse desejo insatisfeito, esqueciam-se de olhar para si, de serem felizes.

Sofria o pai com o sofrimento dos filhos. Querendo ajudá-los, pensou um dia que melhor seria dividir o reino, para que não viessem a lutar depois da sua morte. De tudo o que tinha, deu o céu para seu filho louro, que governasse junto ao sol brilhante como seus cabelos. E entregou-lhe pelas rédeas um cavalo alado. Ao moreno coube o verde mar, reflexo de seus olhos. E um cavalo marinho.

O primeiro filho montou na garupa lisa, entre as asas brancas. O segundo filho firmou-se nas costas ásperas do hipocampo. A cada um, seu reino. Mas as pernas que roçavam em plumas esporearam o cavalo para baixo, em direção às cristas das ondas. E os joelhos que apertavam os flancos molhados ordenaram que subisse, junto à tona.

Do ar, o príncipe das nuvens olhou através do seu reflexo, procurando a figura do irmão nas profundezas.

Da água, o jovem senhor das vagas quebrou com seu olhar a lâmina da superfície procurando a silhueta do irmão.

O de cima sentiu calor, e desejou ter o mar para si, certo de que nada o faria mais feliz do que mergulhar no seu frescor.

O de baixo sentiu frio, e quis possuir o céu, certo de que nada o faria mais feliz do que voar na sua mornança.

Então emergiu o focinho do cavalo marinho e molharam-se as patas do cavalo alado.

Soprando entre as mãos em concha os dois irmãos lançaram seu desafio. Alinhariam os cavalos na beira da areia e partiriam para a linha do horizonte. Quem chegasse primeiro ficaria com o reino do outro.

– A corrida será longa, – pensou o primeiro. E fez uma carruagem de nuvens que atrelou ao seu cavalo.
– Demoraremos a chegar, – pensou o segundo. E prendeu com algas uma carruagem de espumas nas costas do hipocampo.

Partiram juntos. Silêncio na água. No ar, relinchos e voltear de plumas. Longe, a linha de chegada dividindo os dois reinos.

Os raios de sol passavam pela carruagem de nuvens e desciam até a carruagem de espumas. Durante todo o dia acompanharam a corrida. Depois brilhou a lua, a leve sombra de um cobriu o outro de norte mais profunda.

E quando o sol outra vez trouxe sua luz,surpreendeu-se de ver o cavalo alado exatamente acima do cavalo marinho. Tão acima como se, desde a partida, não tivessem saído do lugar.

Galopava o tempo, veloz como os irmãos.

Mas a linha do horizonte continuava igualmente distante. O sol chegava até ela. A lua chegava até ela. Até os albatrozes pareciam alcançá-la no seu vôo. Só os dois irmãos não conseguiam se aproximar.

De tanto correr já se esgarçavam as nuvens da carruagem alada, e a espuma da carruagem marinha desfazia-se em ondas. Mas os dois irmãos não desistiam, porque nessa segunda coisa também eram iguais, no desejo de vencer.

Até que a linha do horizonte teve pena.

E devagar, sem deixar perceber, foi chegando perto.

A linha chegou perto. E chegou perto. Baixou seu vôo o cavalo alado, quase tocando o reflexo. Aflorou o cavalo marinho entre marolas. As plumas, espumas se tocaram. Céu e mar cada vez mais próximos confundiram seus azuis, igualaram suas transparências. E as asas brancas do cavalo alado, pesadas de sal, entregaram-se à água, a crina branca roçando já o pescoço do hipocampo. Desfez-se a carruagem de nuvens na crista da última onda. Onda que inchou, rolou, envolvendo os irmãos num mesmo abraço, jogando um corpo contra o outro, juntando para sempre aquilo que era tão separado.

Desliza a onda sobre a areia, depositando o vencedor. Na branca praia do horizonte, onde tudo se encontra, avança agora um único príncipe, dono do céu e do mar. De olhos e cabelos castanhos, feliz enfim.

Colasanti, marina. Um desejo e dois irmãos.

In: Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro: Global, 1999.

Peter Pan

Certo dia, ao dormir sentada, a senhora Darling acordou assustada e viu Peter Pan entrando pela janela. A um grito, o menino foge pela janela, mas sua sombra fica. Numa noite, Peter e Sininho entram no quarto das crianças à sua procura. Peter não consegue colá-la e chora. Wendy acorda e ajuda-o, costurando a sombra. Peter revela que passa a maior parte do tempo com os meninos da Terra do Nunca e convence Wendy a ir contar histórias para eles, levando junto seus irmãos. A cachorra Naná, que tinha farejado o quarto das crianças, avisa aos pais que algo está acontecendo. O casal vê quatro figurinhas flutuando no quarto, mas quando eles chegam, já estão voando lá fora.

Enquanto Peter e os meninos voavam, sua aproximação começou a ser sentida na Terra do Nunca, onde tudo costumava ficar muito tranqüilo quando ele não estava. Aos poucos, a ilha começou a acordar e os meninos procuravam Peter, os piratas procuravam os meninos, os índios procuravam os piratas e as feras procuravam os índios. Gancho procura especialmente por Peter, que um dia decepou-lhe a mão direita, atirando-a a um jacaré que passava.

A partir daquele dia o jacaré o persegue para comê-lo, podendo ser identificado pelo tic-tac do relógio que engoliu junto com a mão. Gancho resolve voltar ao navio e fazer um bolo de chocolate perigosíssimo e deixar na Lagoa das Sereias para os meninos. Ouve o tique-taque do crocodilo e foge. O grupo chega. Não descem à terra porque lá está o Capitão. Peter pede a Sininho que guie Wendy, e ela grita aos meninos que Peter ordenou-os que a matem. Caladinho dispara uma flecha, acertando-a. A menina não morre, o botão que trazia junto ao peito impediu. Ao descobrir que Sininho fora a mandante, Peter pede-a que desapareça. Ao redor de Wendy, eles constroem uma cabaninha. Ela passa a tomar conta dos meninos.

Certo dia, dois piratas aproximam-se do bote com a índia Onça Rosa para que fosse abandonada à Lagoa até morrer. Peter ordena que todos pulem na água e observa à distância os piratas. Ao ver a índia ser colocada num rochedo, imita a voz do Capitão ordenando aos piratas que a soltem. O Capitão Gancho descobre que seus homens a haviam soltado a índia diante de uma ordem dele. Gancho dialoga com aquela que, supostamente, seria a sua voz e descobre ser Pan. Os piratas partem para uma luta com os meninos. Peter e Gancho se defrontam e o pirata é jogado à água com o jacaré no seu encalço. Os meninos buscam por Wendy e por Pan, mas nada vêem. No alto do rochedo, com água subindo, Peter não consegue voar ou nadar. Mas salva Wendy amarrando um papagaio de papel à sua cintura, fazendo-a flutuar. Aguarda a morte quando improvisa um barco e foge.

Pelo fato de Peter ter salvo a índia, forma-se uma aliança entre os índios e os meninos. Wendy e os irmãos resolvem voltar para casa. Ao saírem, deparam-se com os índios sendo massacrados pelos piratas, que acabam aprisionando Wendy e os meninos. Gancho envenena o remédio de Peter e vai embora, porém, Sininho o toma para impedir que Peter morra, passando mal logo em seguida. É salva pelas palmas das crianças que acreditam em fadas. Pan, ao saber que Wendy e os meninos estão presos, vai ao encontro do Capitão Gancho na embarcação e sobe nela imitando o tique-taque. Gancho havia ordenado que as crianças fossem jogadas ao mar, mas, ouvindo o tique-taque, procura esconder-se com seus companheiros. Os meninos correm à murada e vêem Peter. Ele entra na cabina do capitão. Gancho manda um pirata para buscar o chicote e fazer os meninos dançarem. O pirata vai, mas não volta. Outro pirata entra e sai de lá rodopiando. Obrigado a retornar lá, também não volta. Outro tem o olho vazado por não querer ir e, desesperado, atira-se ao mar. O próprio Capitão Gancho vai à cabina e sai de lá cambaleando. Manda os meninos, na esperança de serem atacados, mas eles se armam, saem em silêncio e se escondem. Peter troca de lugar com Wendy no mastro, dá um grito de corvo, interpretado pelos piratas como um sinal de que os meninos estariam mortos. Gancho ordena jogarem Wendy no mar, mas tem uma surpresa ao ver que se trata de Peter. Inicia-se a batalha e os piratas pulam ao mar. Peter e Gancho digladiam-se e o pirata abandona a luta correndo ao depósito de pólvora e ateando fogo, mas Peter consegue jogar ao mar a mecha fumegante. Vencido, Gancho joga-se ao mar ignorando que o crocodilo lá o esperava.

As crianças voltam para casa e são recebidas amorosamente. Wendy pede aos pais que adotem os meninos. Todos aceitam, menos Peter. Ao saber que teria de freqüentar a escola, trabalhar, e nunca mais brincar ele despede-se de todos e volta para a Terra do Nunca, retornando na primavera do ano seguinte completamente esquecido das antigas aventuras.

Wendy cresceu, casou-se e teve uma filha chamada Jane que também foi levada à Terra do Nunca, para fazer a faxina periódica. Após casar-se, Jane teve uma filha chamada Margareth, que também viajava com Pan para a ilha. Certamente, quando Margareth crescer, terá uma filha que continuará a viver as mesmas aventuras.